A discussão sobre Cannabis medicinal e psiquiatria tem várias impropriedades, alertou, em entrevista ,
o diretor da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro e
filiado à Associação Brasileira de Psiquiatria, Marcelo Allevato. No
caso da doença de Alzheimer, que é a forma mais comum de demência
neurodegenerativa em pessoas de idade, por exemplo, Allevato descartou
que haja relação com a Cannabis medicinal. “É uma demência, e a Cannabis
não tem possibilidade nenhuma de tratar demência. Pode tratar,
teoricamente, algumas alterações de comportamento, mas não tem nenhuma
evidência consistente disso ainda não. É só uma possibilidade.”

Segundo Allevato, existem muitas
impropriedades sobre “medicamentos” à base de Cannabis. Ele disse que,
de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
existe apenas um medicamento à base de Cannabis, mas destacou que há
produtos à base da planta, que são registrados com autorização
provisória, com duração de cinco anos, que podem ser usados quando se
esgotam todas as possibilidades terapêuticas disponíveis no mercado
brasileiro.
Tudo isso está englobado na Resolução da
Diretoria Colegiada da Anvisa (RDC 327), que regula os produtos de
Cannabis no Brasil. “Então, falar de medicamentos é impropriedade,
demonstra desconhecimento do assunto. O que é triste é que muitos
médicos desconhecem também e são presas fáceis de mensagens comerciais
que não têm a menor consistência, na realidade”, advertiu o médico
psiquiatra.
Desenvolvido em várias fases, da concepção
da ideia até os testes clínicos, e depois comercializado, o único
medicamento à base de Cannabis existente no Brasil é o Mevatyl, liberado
como adjuvante no tratamento de espasticidade na esclerose múltipla,
causada por danos ou lesões na parte do sistema nervoso central (cérebro
ou medula espinhal) que controla o movimento voluntário. “Este é o
único medicamento à base de Cannabis existente no Brasil. Chamar produto
à base de Cannabis de medicamento é uma impropriedade”, reiterou o
médico.
Confirmação
A assessoria de imprensa da Anvisa confirmou à AB
que, até o momento, o único medicamento à base de Cannabis registrado
no Brasil tem o nome comercial de Mevatyl. De acordo com a Anvisa, o
Mevaty é um medicamento, pois passou pelos mesmos requisitos técnicos
aplicados a todos os demais registrados na agência, o que envolve
estudos clínicos e comprovação de segurança e eficácia, entre outras
exigências. O Mevatyl foi registrado em 9 de janeiro de 2017 com
indicação no tratamento sintomático da espasticidade moderada a grave
relacionada à esclerose múltipla.
Os demais itens regularizados pela Anvisa
são categorizados tecnicamente como produtos derivados de Cannabis, um
segmento específico criado em 2019 (Resolução RDC 327), que não tem
indicação terapêutica específica e cuja análise de benefício deve ser
feita pelo médico, de acordo com o caso de cada paciente.
Segundo a Anvisa, os produtos derivados de Cannabis recebem autorização
sanitária, e não registro, para que possam estar à disposição dos
pacientes. “Ou seja, a indicação e a forma de uso dos produtos derivados
de Cannabis são de responsabilidade do médico que assiste o paciente,
que faz tal indicação a partir da avaliação de que seu paciente pode se
beneficiar do tratamento, especialmente em casos para os quais não há
opções terapêuticas disponíveis”.
Atualmente, existem 20 produtos autorizados pela Anvisa. A lista completa pode ser consultada AQUI.
Sem liberação
Allevato afirmou que não há, em lugar algum
do mundo, medicamento à base de Cannabis liberado para uso psiquiátrico.
Legislações de alguns países permitem o uso de derivados da Cannabis em
situações excepcionais, em algumas enfermidades. Isso ocorre, por
exemplo, em Israel e na maioria dos estados norte-americanos. “Mas tudo
dentro de um controle muito rígido, após se esgotarem as possibilidades
terapêuticas”.
O médico disse que, no Brasil, o que houve foi uma “tentativa de
disseminar um uso que é completamente contrário ao que é preconizado. Na
verdade, é disseminar um uso de maneira indiscriminada, ou seja, tenho
ansiedade, vou tomar canabidiol”. O mesmo se aplica para depressão,
insônia, Alzheimer, autismo. O médico sustentou que não há evidência
científica sólida para isso.
Ele admitiu, porém, que, em casos em que o
paciente não responde a nada, o médico pode usar esses produtos. É o
chamado uso compassivo.
De acordo com o psiquiatra, uma corrente que defende os produtos
derivados da maconha sustenta que a divulgação das supostas propriedades
medicinais da Cannabis reduz a percepção de risco recreacional. Para
ele, o uso recreativo da Cannabis implica riscos que têm sido cada vez
mais avaliados, principalmente em pacientes vulneráveis geneticamente,
ou que estão em janelas críticas do desenvolvimento. Nesses casos, a
Cannabis pode levar ao desenvolvimento de psicoses, de dependência e
gerar alterações no desenvolvimento cerebral, muitas das vezes
irreversíveis.
Momento complicado
Já a presidente da Associação Brasileira de
Estudos de Álcool e Outras Drogas (Abead), Alessandra Diehl, destacou
que o mundo vive hoje um momento complicado, em que interesses
financeiros muitas vezes se sobrepõem ao interesse individual e
coletivo. “Esse lobby de ter algo que funcione para tudo, para
mim, já soa como um alerta. Como uma substância vai servir para tantas
coisas ou tantas condições assim?”, questionou Alessandra, disse em entrevista.
Alessandra disse que há uma desinformação
crescente, porque se reforça que algo possa servir para tudo, quando, na
verdade, sabe-se que tem apenas condições específicas em que existem
evidências comprovadas. Não se trata, segundo a psiquiatra, da Cannabis
medicinal em si, mas de um componente que seria o canabidiol (CBD).
A psiquiatra ressaltou que o sistema do
canabinoide precisa ser desvendado, porque aí pode estar o segredo do
desenvolvimento de medicamentos, até para se saber um pouco mais de
determinadas doenças. Segundo Alessandra, não se pode dizer que o
canabidiol funciona para tudo, porque ele pulou o caminho do
desenvolvimento dos fármacos, que tiveram que passar por regulações que
lhe garantem condições de segurança, bioequivalência,
biodisponibilidade, qualidade, dose terapêutica.
Outra visão
Visão diferente tem o médico Nelson
Goldenstein, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Goldenstein disse à Agência Brasil que ficou estarrecido com a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe médicos de prescrever Cannabis in natura
para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o
canabidiol. O CFM vedou também a prescrição de canabidiol para indicação
terapêutica diversa da prevista na resolução, com exceção de estudos
clínicos previamente autorizados pelo sistema formado pela Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa e Conselhos de Ética em Pesquisa.
O psiquiatra afirmou, entretanto, que seguirá a resolução do CFM. Ele
admitiu que o uso da Cannabis precisa de regulamentação, mas considerou
que voltar no tempo é inadmissível. Goldenstein salientou que há
descrições na literatura do uso medicinal da Cannabis na China e na
Índia há cerca de 6 mil anos, descrevendo a planta com efeito medicinal
polivalente, benéfico e terapêutico para várias condições.
Tais efeitos foram confirmados no século 19
por médicos da Rainha Vitória, em expedições realizadas nas colônias do
Reino Unido, cujas publicações comprovaram o uso terapêutico e
polivalente da Cannabis no tratamento de problemas como epilepsia,
ansiedade e insônia. Até o início do século 20, não havia proibição
alguma para o uso de Cannabis, disse Goldenstein.
As farmácias de
manipulação, inclusive no Brasil, preparavam as fórmulas prescritas
pelos médicos à base de Cannabis. Segundo o médico, o laboratório Lille,
dos Estados Unidos, vendia na década de 1920 uma tintura de Cannabis
para asma brônquica, diminuição da pressão arterial, insônia e
ansiedade.
Goldenstein destacou que, em 1960, Raphael
Mechoulam e sua equipe descreveram os até então inéditos canabidiol e
tetrahidrocanabinol (THC), abrindo espaço para que pesquisadores
americanos identificassem o sistema endocanabinoide (SEC) na década de
1990. O SEC é considerado um importante aliado da regulação e do
equilíbrio de uma série de processos fisiológicos no corpo humano. O
sistema oferece as condições naturais para que o organismo se beneficie
das propriedades terapêuticas da Cannabis no enfrentamento de uma série
de doenças.
O psiquiatra ressaltou que os perigos do uso
indiscriminado e em doses elevadas da maconha já eram falados pelos
chineses 3.700 anos A.C. (Antes de Cristo), portanto há 6 mil anos. É um
risco que existe também com a anfetamina e a morfina, entre outras
substâncias. Para Goldenstein, ser contra evidências de 6 mil anos “é
desconhecimento”, o mesmo ocorrendo em relação a estudos efetuados desde
os anos de 1960, que atestam o uso polivalente e medicinal da Cannabis.Post: G. Gomes
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Informações: Psiquiatria, Marcelo Allevato