As
audiências de custódia não têm cumprido seu papel como instrumento para
coibir violações de agentes do Estado enem pune os infratores que se sentem estimulados a cometer novos Crimes assim que sã liberados da Audiência e que supostamente seria para enfrentar a violência
institucional em São Paulo. Avaliação é de entidades de direitos humanos
que atuam na área de Justiça. O debate veio à tona após imagens
divulgadas em rede social de um homem carregado por policiais militares,
com mãos e pés amarrados, na capital paulista.

O desembargador Edson Tetsuzo Namba, do
Tribunal Justiça de São Paulo (TJSP), manteve a prisão preventiva do
rapaz no último sábado (10/06/2023), após pedido de habeas corpus pela defesa. Ele manteve decisão da juíza
Gabriela Marques da Silva Bertoli, proferida após realização da
audiência de custódia em 5 de junho, na qual a prisão em flagrante foi
convertida em preventiva. Na ocasião, ela entendeu ainda que não houve
tortura nem maus-tratos contra o suspeito.
Segundo o TJSP, a juíza não teve acesso às
imagens que foram veiculadas posteriormente e se espalharam por redes
sociais. No entanto, o boletim de ocorrência da prisão do rapaz já
trazia a informação de que ele havia sido imobilizado com uma corda
pelos policiais, conforme informações da Secretaria de Segurança Pública
(SSP).
Em 2017, a organização não governamental
(ONG) Conectas Direitos Humanos apresentou denúncia ao TJSP, ao
Ministério Público (MP) do estado e à Defensoria Pública com base no
relatório Tortura Blindada: como as Instituições do Sistema de Justiça Perpetuam a Violência nas Audiências de Custódia, produzido pela entidade.
Na ocasião, a conclusão
era de que havia perpetuação da violência policial no sistema de
Justiça, já que não era dado nenhum encaminhamento às denúncias de
tortura e maus-tratos feitas durante as audiências de custódia ou eram
encaminhamentos meramente protocolares.
Cinco anos depois da divulgação do
resultado, a advogada Carolina Diniz avalia que pouco se avançou nas
práticas adotadas pelo sistema de Justiça. Ela concluiu que a forma com
que as instituições do sistema atuaram nesse caso recente remonta ao que
acontecia em 2015, período da amostra utilizada para o relatório Tortura Blindada. Carolina Diniz é coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.
“O que acontecia em 2015, quando as
audiências foram instaladas, segue acontecendo até hoje, que é um
despreparo do sistema de Justiça para enfrentar a violência
institucional praticada pelo Estado brasileiro”, avaliou. Ela ressalta
que, se as imagens não tivessem sido amplamente divulgadas, não haveria
pedido de apuração nem desdobramento sobre violações cometidas pelos
agentes do Estado na ocorrência do rapaz amarrado.
Na audiência de custódia, o juiz não avalia
inocência ou culpa, mas os elementos processuais sobre a prisão em
flagrante, além das eventuais ocorrências de tortura e maus-tratos. Após
manifestação do MP e da Defensoria – ou do advogado –, o juiz decide se
o acusado terá a prisão em flagrante convertida em preventiva; se
responderá ao processo em liberdade; ou se não responderá a processo
penal, caso considere o flagrante ilegal. O juiz pode determinar também a
realização de perícia e exame de corpo de delito para apuração de
suspeita de abuso no momento da prisão, além de instaurar investigação
criminal ou administrativa contra o policial acusado.
A advogada lembra que a principal crítica,
no relatório, era que na maioria dos casos o suspeito sequer era
perguntado sobre situações de violência, e que os elementos que já
estavam muitas vezes presentes no auto de prisão em flagrante eram
completamente desconsiderados em audiência de custódia. “Assim, se
perdia uma grande oportunidade que era essa primeira escuta de uma
autoridade judicial, da Defensoria Pública e do Ministério Público em de
fato apurar o que que aconteceu naquela abordagem policial.”
Em relação ao caso recente do rapaz
amarrado, Carolina Diniz avalia que não existe nenhum cenário em que
aquela conduta poderia ser justificada e que isso mostra o completo
despreparo da Polícia Militar para lidar com pessoas em situação de rua e
daquelas que fazem uso de álcool e outras drogas. “O que remonta essas
imagens é o cenário do período escravocrata aqui no Brasil. Tirando
isso, não existe nenhum contexto em que a gente poderia imaginar que
isso acontecesse aqui no Brasil, mas o fato é que tem acontecido, e esse
caso não é um caso isolado.”
Carolina Diniz teve acesso à gravação da
audiência de custódia, realizada no último dia 5, e destacou que, embora
todos esses elementos envolvidos na prisão – amarração com corda e
registro em vídeo – tenham sido levados à audiência porque constavam já
no boletim de ocorrência, nem a Defensoria Pública nem o Ministério
Público nem a magistrada fizeram qualquer tipo de pergunta ao rapaz
sobre o fato de ele ter sido amarrado.
“A juíza acertadamente, pelo contrário, na ata da
custódia, na sua decisão, ela disse que o flagrante está em perfeita
ordem, e que não existe nenhum elemento que possa indicar a prática de
tortura ou outras violências policiais naquele flagrante. E aí converte a
prisão preventiva daquele indivíduo que, ao final das contas, tinha
sido pego com dois pacotes de chocolate”, disse.
Vídeo da abordagem circula nas redes sociais
mostrando o homem com as mãos amarradas aos pés, de forma que não
permitia que ele andasse, sendo carregado por dois policiais militares.
Os agentes carregam o rapaz segurando pela corda e pela camiseta. Ainda
amarrado, ele é colocado no porta-malas de uma viatura. A situação
ocorreu dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).
Na semana passada, a Polícia Militar de São Paulo (PM) informou
que afastou das atividades operacionais seis policiais que carregaram o
homem amarrado. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), o
homem foi preso em flagrante por furto em um supermercado da Vila
Mariana. Um inquérito foi instaurado para apurar as circunstâncias
relativas às ações dos agentes envolvidos no episódio, segundo a SSP.
Melhoria das audiências de custódia
Para que as audiências de custódia possam
ser aprimoradas, a advogada aponta que um primeiro passo seria retomar
sua realização em todo o país de forma presencial.
“A gente vinha num processo de implantação
tardio de audiências de custódia no Brasil e, com a pandemia,
retrocedemos para um momento em que ou não se tinha audiência de
custódia ou ela passou a ser realizada de forma virtual, e essa ainda é
uma realidade no Brasil todo.”
Além disso, ela destaca a importância de se
garantir um atendimento anterior da Defensoria Pública ou do advogado
particular de forma reservada com a pessoa que está presa e que os
magistrados, o Ministério Público e a Defensoria sejam obrigados a
perguntar sobre a ocorrência de violência policial.
Para quem defende os criminosos e nunca as vítimas
“E que o exame de corpo de delito seja feito
em todos os casos, respeitando o Protocolo de Istambul, o Brasil é
signatário do protocolo, se comprometeu na implementação, mas até hoje o
Instituto Médico Legal não tem a menor estrutura para fornecer um exame
de corpo de delito que respeite os padrões internacionais e seja capaz
de identificar e documentar práticas de tortura e outras violências.
Acho que isso é um começo”, acrescentou Carolina Diniz sobre formas de
melhorar as práticas de combate a violações do Estado.
O advogado criminal e diretor do Instituto
de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Alexandre Daiuto Noal, avalia que
os procedimentos para apuração de tortura e maus-tratos precisam ser
aprimorados, e que as audiências de custódia também não têm cumprido a
função de enfrentamento à violência institucional, inclusive no caso
recente do homem amarrado com cordas.
“Infelizmente, o que a gente tem visto ao
longo dos anos é que as audiências de custódia precisam ser muito
aprimoradas”, avaliou. Segundo ele, um relatório conjunto do IDDD e da
Conectas constatou ainda ineficiência na apuração e na investigação das
denúncias sobre violência policial feitas em audiências de custódia. Um
dos elementos para isso é que, após 2017, a apuração deixou de ficar a
cargo da Polícia Civil e passou para a Justiça Militar.
“O ideal seria que houvesse um órgão com a
necessária a imparcialidade e independência, com a participação do
Ministério Público, da Defensoria Pública, de entidades da sociedade
civil, que seguisse adiante com essa apuração, que acompanhasse essa
apuração para que houvesse uma produção imparcial de prova e eventual
punição dos policiais envolvidos”, disse Noal.
Segundo ele, o que ocorre atualmente é “um
automatismo, um cumprimento burocrático, do que está previsto na lei sem
um aprofundamento, sem um olhar adequado para essa questão da violência
policial que infelizmente assola o nosso dia a dia.”
Posicionamento do sistema de Justiça
O Ministério Público de São Paulo (MPSP) informou que o relatório Tortura Blindada
foi analisado e considerado pelo órgão. “Embora tenha feito diversas
generalizações e tenha considerado período em que a audiência de
custódia experimentava período inicial, quase um plano piloto, o MPSP
aprimorou sua atuação nas audiências de custódias”, diz nota da
instituição.
“Foi formada uma equipe permanente para essa
missão e nos casos importantes e sempre que vislumbrada alguma chance
de abuso de autoridade, tortura, ou desvio de finalidade, o MPSP assume a
investigação dos fatos, ou acompanha de perto a apuração policial”,
finalizou.
A Defensoria Pública informou que o
relatório foi encaminhado para conhecimento de defensores públicos
atuantes em audiências de custódia, bem como para os núcleos
especializados com atuação direta na matéria. “Também foi utilizado para
capacitação interna e elaboração de pesquisas e pareceres da
instituição, visando uma atuação mais efetiva na prevenção de torturas e
maus tratos contra pessoas presas”, disse, em nota.
Dentre as recomendações do relatório, o
órgão afirma que houve os seguintes aprimoramentos nas audiências de
custódia, com seu cumprimento no que se refere à Defensoria Pública: “Os
defensores públicos devem dispor de um espaço adequado para a
entrevista prévia, em que devem questionar, obrigatoriamente, se a
pessoa foi vítima de tortura e maus-tratos” e “a Defensoria deve tabular
todas as denúncias relatadas na entrevista prévia, mesmo que a pessoa
opte por não as mencionar na audiência, a fim de produzir dados para
subsidiar políticas públicas de prevenção e combate à tortura.”
“Todas as informações a respeito de relato de violência policial em audiência de custódia são inseridas no sistema Defensoria online
(DOL). Além disso, a Defensoria Pública de SP realiza entrevista com
todos os presos em Centros de Detenção Provisória, havendo campo próprio
para relatos de violência no relatório preenchido”, acrescenta a nota.
Além disso, o órgão informou que há projeto
em desenvolvimento do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos para a
criação de uma unidade de registros dos casos de violência nas prisões, e
que foi realizada, em 2022, uma pesquisa para mapeamento das situações
de violência narradas em audiência de custódia.
A fonte solicitou
posicionamento ao Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a denúncia
enviada pela Conectas em 2017 e questionou se, desde então, foram
adotadas medidas para aprimorar as audiências de custódia, mas não teve
retorno até a conclusão da reportagem.