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02 maio, 2024

O STF extinguiu a hora extra para os policiais civis do Brasil?

 

Por mais estranha que possa parecer, a pergunta grafada no título deste artigo tem sido frequente entre as forças de segurança e intranquilizado o ambiente policial no Brasil.

Em acréscimo, há uma sensação de frustração e até angústia na polícia judiciária brasileira, especialmente porque circula uma falsa notícia da possibilidade de substituição generalizada da hora extra prevista no art. 7º, XVI da Constituição federal, por verba de natureza indenizatória, justamente após as importantes conquistas oriundas dos julgamentos das ADIs 4079/ES, 5114/SC e 5404/DF. Daí o desapontamento e a crescente insatisfação.

Apesar de presentes em normas constitucionais originárias, os direitos conquistados nas referidas ADIs levaram cerca de três décadas para se firmar, inclusive passaram por enorme crise administrativa e jurisprudencial após a EC nº 19/98.

É que a partir desta Emenda, boa parte da Administração Pública passou a proibir o pagamento das horas extras ao policial civil que recebe subsídio (art. 144, § 9º, CF). Isso sob o equivocado argumento de incompatibilidade dessa verba remuneratória (art. 39, § 3º, CF) com o regime que impõe parcela única (art. 39, § 4º, CF).

Essa não foi a hipótese fática do Estado de Pernambuco, julgada na ADI 7356/PE. Esta ação concentrada se debruçou sobre norma estadual que fixava o regime de vencimentos, que convivia com a previsão de pagamento de hora extra. Portanto, ainda que a ação tenha tratado da contraprestação pelo trabalho extraordinário de policiais civis, a convivência com o regime de subsídios não foi parâmetro de controle como ocorreu nas ADIs 4079/ES, 5114/SC e 5404/DF.

Embora a vedação ao pagamento de hora extra, sob o fundamento de incompatibilidade com o regime de subsídio não tenha ocupado lugar no debate da ADI 7356/PE, essa é a realidade de alguns outros Estados, onde a lei que instituiu o regime de subsídios vedou expressamente o pagamento de horas extras, a exemplo dos Estados de Sergipe[1] e Alagoas[2].

Logo, a ADI 7356/PE possui base fática diversa das ADIs 4079/ES, 5114/SC e 5404/DF.

Relembre-se que por meio da ADI 4079/ES o STF consagrou a tese capitaneada pelo Prof. José Afonso da Silva, no sentido de que os direitos previstos no § 3º do art. 39 da Constituição Federal são perfeitamente compatíveis com o regime de subsídios (§ 4º).

“O regime de subsídios não impede o pagamento dos direitos trabalhistas aplicáveis aos servidores públicos por força do art. 39, § 3º, da Constituição. Os §§ 3º e 4º do art. 39 da Carta convivem harmonicamente e o dispositivo legal estadual se limitou a reproduzir as restrições que já constam do art. 39, § 4º, da Lei Fundamental”.

No julgamento da ADI 5114/SC, além de ficar ratificado que o regime de subsídios é compatível com os direitos previstos no § 3º, deu-se especial destaque à compatibilidade entre o pagamento de horas extras a policiais civis e o regime do art. 39, § 4º e 144, § 9º da CF.

Contudo, o toque fundamental da ADI 5114/SC está na afirmação categórica de que lei não pode impedir o pagamento de hora extra, pois o art. 7º, XVI é norma autoaplicável.

REMUNERAÇÃO PELO SERVIÇO EXTRAORDINÁRIO. COMPATIBILIDADE COM O REGIME DO SUBSÍDIO. IMPOSSIBILIDADE DE LEI IMPEDIR PAGAMENTO POR HORAS EXTRAS TRABALHADAS. (Trecho da Ementa da ADI 5114/SC)

O direito à remuneração pelas horas extras foi expressamente garantido aos servidores públicos pelo § 3º do art. 39 da Constituição e seu pagamento independe de previsão legal específica, como decidiu este Supremo Tribunal:

“Agravo regimental no agravo de instrumento. Servidor público. Pagamento de serviço extraordinário. Artigo 7º, inciso XVI, da Constituição Federal. Autoaplicabilidade. 1. O art. 7º, inciso XVI, da Constituição Federal, que cuida do direito dos trabalhadores urbanos e rurais à remuneração pelo serviço extraordinário com acréscimo de, no mínimo, 50%, aplica-se imediatamente aos servidores públicos, por consistir em norma autoaplicável.

2. Agravo regimental não provido” (AI n. 642.528-AgR, Relator o Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 15.10.2012)

Na ADI 5404/DF, além de confirmar o conteúdo decisório da ADI 5114, atestando a compatibilidade dos direitos trabalhistas previstos no § 3º do art. 39 da CF com o regime de subsídios, teve o condão de afastar a utilização da Súmula Vinculante nº 37 como obstáculo ao pleito de pagamento de horas extras formulado pelos policiais insertos em regimes jurídicos que vedaram esse direito sob o argumento da incompatibilidade.

Neste julgamento, o Ministro Luís Roberto Barroso rememora a autoaplicabilidade do art. 7º, XVI da CF, a dispensar a lei local como condição para o pagamento da hora extra.

Ademais, este julgamento serviu para espancar polêmica anteriormente instalada nos Tribunais inferiores e no STJ acerca do cabimento do pagamento de horas extras a policiais plantonistas. A ADI 5404/DF dizia respeito a normas atinentes à Polícia Rodoviária Federal, que trabalha ordinariamente em regime de plantões. À vista disso, consignou que o importante para a concessão do direito é que as horas extras realizadas eventualmente “ultrapassem a quantidade remunerada pela parcela única”.

Esse introito já é o suficiente para notar que o regime de subsídio ocupou lugar central nas ADIs 4079/ES, 5114/SC e 5404/DF, mas não foi parâmetro de controle na ADI 7356. Nas primeiras, regra geral, a questão era saber se a hora extra era compatível com o regime de subsídio. E, em sendo compatível, se o pagamento com o acréscimo de 50% dependia da existência ou do conteúdo de norma infraconstitucional. Nesta última, diferentemente, a discussão esteve relacionada à possibilidade de instituição de Programa Governamental que pressupõe jornada extraordinária voluntária de policiais civis prevê valor fixo como contraprestação ao trabalho desempenhado pelo servidor.

Os objetos das ADIs 5114/SC e 5404/DF contemplaram normas que, supondo a incompatibilidade da hora extra com o regime de subsídio em parcela única, vedaram a remuneração das horas extras. No caso da ADI 5114/SC, em particular, encontrou-se “jeitinho brasileiro” de pagar pelo necessário trabalho extraordinário do policial, criando uma verba de natureza indenizatória.

Os Estados que assim agiram sabem que o não pagamento pelo trabalho extraordinário põe em risco a prestação de um serviço deveras essencial e elevaria o risco de um trabalho que já é inevitavelmente perigoso. A abertura de algumas delegacias de polícia nos fins de semana e a custódia de presos são exemplos de serviços ordinários sustentados, regra geral, pelo trabalho além jornada dos policiais.

Mas há mais por traz da preferência dos Estados pelo pagamento da hora extra mediante verbas a que a lei local atribui a natureza indenizatória: fugir maliciosamente do controle das despesas totais com pessoal efetuada pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Porém, tendo em vista que o foco deste artigo não é analisar criticamente as razões do comportamento ilícito dos Estados e a permissividade dos Órgãos de Controle, mas fazer um cotejo analítico entre as decisões proferidas nas 5114/SC, 5404/DF e 7356/PE, tenha-se em mente que nas duas primeiras a inconstitucionalidade tinha a ver com a substituição ardilosa e inconstitucional da hora extra por uma verba indenizatória indecorosa ou pela simples negação do direito.

Essa prática foi barrada porque encontrou a mão firme do Supremo Tribunal Federal, que entre tantos fundamentos, atribuiu à verba a sua real natureza (remuneratória), independente do nomem juris que lhe atribuiu a lei local.

O regime pernambucano, avaliado na ADI 7356/PE, não extinguiu ou vedou juridicamente o pagamento da hora extra com efetiva natureza remuneratória, apenas criou uma estrutura paralela, consistente em um Programa Governamental onde o pagamento se dá mediante uma indenização. Em tese, o policial que realiza o trabalho extraordinário fora do programa recebe hora extra.

Para que nota distintiva do caso fique ainda mais clara, segue um exemplo. Se um policial sergipano ultrapassar a sua carga horária legal mensal de trabalho porque se dedicou a operações policiais demoradas ou a campanas longas ou ficará sem receber pelo trabalho ou terá que burlar a ordem jurídica posta.

A razão disso é simples. Não há previsão de verba que possa remunerá-lo. A hora extra está vedada em Sergipe. Em seu lugar foi concebida uma rubrica denominada RETAE/IFV, a que a lei local atribui a natureza indenizatória. Ademais, a verba é paga por um trabalho voluntário exercido em plantões.

Vejam quantas incongruências. Inicialmente o servidor não teve nenhum decréscimo patrimonial a ser indenizado, senão um trabalho a ser remunerado porque não coberto pelo subsídio, que só pagou pelas horas ordinária e legais trabalhadas. Depois, o serviço não foi voluntário, foi prestado no cumprimento do dever legal. E ainda que foçassem a mão para encaixar a hipótese no precedente oriundo da ADI 7356/PE, falta a Sergipe a nota singular da existência de um Programa Governamental que convive com o direito posto no art. 7º, XVI da Lei Maior. Não dá. Em Sergipe, verbi gratia, a situação é outra: a hora extra foi vedada.

Não há, no exemplo dado, como preservar o art. 7º, XVI, como pressupõe a tese fixada na ADI 7356/PE, conforme destacado nos votos dos Ministros Barroso e Alexandre de Moraes.

Em tese, no Estado de Sergipe, por exemplo, ou o trabalho extraordinário restará sem contraprestação, gerando enriquecimento ilícito do Estado, ou o servidor e o gestor serão obrigados a burlar a lei, incluindo o servidor em plantões voluntários que não serão efetivamente prestados como forma de resolver uma demanda pecuniária justa do servidor.

 A verba é, pois, escandalosamente inconstitucional, salvo interpretação conforme (técnica utilizada pela Ministra Cármen Lúcia na ADI 5114/SC). Esse é um regime sem salvação, cujo destino só pode ser o mesmo da ADI 5114/SC.

Se em Sergipe houvesse a previsão do pagamento da hora extra, ao lado de um Programa Governamental definido, executado exclusivamente por policiais voluntários, poder-se-ia aplicar o precedente oriundo da ADI 7356.

São muitos os que não concordam com a solução da ADI 7356/PE, inclusive no seio da Suprema Corte. A votação foi iniciada pelo voto da Relatora original, que deu ao caso a mesma solução das ADIs 5114/SC e 5404/DF e contou com mais 4 (quatro) votos, formando um grupo de 5 (cinco) Ministros considerando o regime pernambucano inconstitucional. Nesse bloco de cinco Ministro se encontra o Min. Edson Fachin, que chegou à mesma conclusão, mas com fundamentos parcialmente divergentes.

Naquele instante o STF só tinha um total de 10 (dez) membros, face a aposentadoria do Min. Ricardo Lewandowski, ou seja, metade da Corte encontrou problemas na engenharia pernambucana.

O Min. Barroso abiu a divergência e, após vista dos autos, o Min. Alexandre de Moraes acompanhou a divergência, sendo seguida pelos demais. A maioria só veio a se formar em prol da divergência após o voto vista, quando o Min. André Mendonça reformulou sua postura.

Agora, depois das notas distintivas dos precedentes, é mais fácil perceber o equívoco cometido pelos intérpretes da Constituição[3] que a partir da ADI 7356 têm defendido que houve a superação das conquistas oriundas das ADIs 5114/SC e 5404/DF. A análise dos votos divergentes demonstra claramente que a situação abençoada, além de excepcional, só foi considerada constitucional porque a maioria vislumbrou a preservação do direito fundamental social (art. 7º, XVI, CF), cujo retrocesso é proibido.

 Beira a má-fé a advocacia contra os precedentes (violação ao princípio da Candura com a Corte), consistente na afirmação de que as bases fáticas das ADIs 5114/SC e 7356/PE são análogas. No caso catarinense não se falou em Programa Governamental. A hora extra tinha sido vedada.

Se o caso não é de desapreço ao nosso sistema de precedentes, a ideia de que a ADI 7366/PE infirmou as ADIs 5114/SC e 5404/DF certamente é fruto do ementismo. De fato, a mera leitura do texto da tese não é suficiente para que seja efetuada a distinção levada á cabo neste artigo.

O STF, ao julgar a ADI 7356 fixou a seguinte tese: “Não viola o art. 7º, XVI, da CF, o estabelecimento de programa de jornada extra de segurança com prestação de serviço em período pré-determinado e com contraprestação pecuniária em valor previamente estipulado, desde que a adesão seja voluntária”. (destaque nosso)

Veja que a decisão só tem sentido no contexto de um Programa.

O acórdão não define o que seja programa governamental, mas sabemos, grosso modo, que são mecanismos de planejamento utilizados pelos governos com vistas a concretizar políticas públicas e otimizar seus recursos, sejam eles financeiros, humanos, logísticos ou materiais.

A Min. Cármen Lúcia destacou que o Programa pernambucano tem os seguintes objetivos:

O Programa tem por objetivo “diminuir a demanda reprimida de ações de defesa social, incrementar o policiamento ostensivo-preventivo, e de polícia judiciária” e “ampliar a prestação de serviços na área de proteção à incolumidade dos cidadãos”, entre outros”.

Portanto, está claro que o Supremo entende que uma política pública de segurança pode ser implementada mediante o trabalho suplementar do policial sem que para isso seja necessário o pagamento de uma prestação remuneratória, a hora extra, mas tão somente o pagamento de uma indenização, atendidas algumas condições.

A razão por que se permite que a contraprestação seja uma indenização – valor fixo – se dá em razão de que o plus de serviço público de segurança oferecido à sociedade ocorre por meio de programa governamental temporário, com objetivos e jornadas pré-determinados, com participação do policial de forma voluntária. Noutras palavras, o policial se insere voluntariamente no programa, que funciona em regime especial. Inserção que afasta o trabalhador do regime jurídico ordinário que guia sua relação com a Administração.

Esse raciocínio, um tanto engenhoso – admita-se, não seria possível se houvesse paralelo sacrifício da remuneração da hora extra regularmente prestada quando o interesse público obriga o policial a estender o seu labor para além de sua jornada ordinária, legalmente prevista.

A convivência com o direito previsto no art. 7º, XVI é exigência que decorre dos fundamento, conforme técnica per relationem utilizada pelo Min. Barroso. Vejam:

Nessa linha, conforme manifestação da Advocacia-Geral da União, “o comando constitucional que estabelece que a remuneração do serviço extraordinário seja superior em, no mínimo, cinquenta por cento à do normal não impede que o legislador estadual institua remuneração específica para os policiais civis que desempenharem, voluntariamente, atividades excedentes às suas atribuições funcionais, sob regime especial de trabalho”. (fl. 12, doc. 27)

Observem que na visão do Min. Barroso, acaso o policial não se voluntarie no Programa e preste serviço extra, receberá na forma da ADI 5114/SC e 5404/DF. Isso é possível deduzir da seguinte passagem do seu voto:

Vale dizer, o regime especial de trabalho decorrente do Programa Jornada Extra de Segurança – PJES não afronta o direito dos policiais civis à percepção de horas extras, uma vez que a adesão ao serviço é voluntária, de modo que o servidor se compromete à prestação de serviço em período pré-definido e com valor de retribuição previamente estipulado”. (fl. 12, doc. 27)

Rememore o caso sergipano e tudo ficará mais claro. Não há como o policial sergipano receber hora extra, pois está vedada. Isso significa dizer que não há lugar para a aplicação do precedente no Estado de Sergipe, Alagoas e tantos outros onde o art. 7º, XVI está completamente vulnerabilizado.

Acaso o leitor se atente para o voto do Min. Alexandre de Moraes, perceberá que sua adesão à permissão dada pelo STF ao Estado de Pernambuco pressupôs que a realização de hora extra pelo policial, fora do Programa, possa ser remunerada com o acréscimo de 50%. Vejam:

No caso dos autos, o regime especial de trabalho decorrente do Programa Jornada Extra de Segurança (PJES) não viola o direito dos policiais civis à percepção de horas extras com adicional de, no mínimo, 50%, já que não se trata de extensão esporádica da jornada de trabalho para atender a necessidades extraordinárias.

O pagamento pela hora extraordinária trabalhada, tem natureza remuneratória, é compatível com o regime de subsídios e deve ser acrescido de ao menos 50% (cinquenta por cento) do valor da hora normal, conforme art. 7º, XVI da Constituição Federal, cuja eficácia plena foi ratificada pelo STF nas ADIs 5114/SC e 5404/DF.  

Noutras palavras, o programa seria uma espécie de jornada de trabalho paralela, cuja participação do policial se daria de forma voluntária, pelo que termina sendo indenizado. Do ponto de vista financeiro, a consequência prática da decisão foi a retirada da garantia que esse trabalho extraordinário tenha remuneração 50% superior à devida pelo trabalho ordinário.

A polêmica se instalou, gerando insegurança no seio policial, porque alguns intérpretes passaram a entender que a tese firmada na ADI 7356/PE representou uma superação das teses fixadas nas ADIs 5114/SC e 5404/DF.

De fato, uma leitura rasa do texto da tese, sem a realização de um efetivo vínculo com os debates efetuados, leva o hermeneuta desatento a crer que o STF passou a admitir que o trabalho extraordinário do policial não seja remunerado, mas indenizado, ou mesmo que é possível extirpar o pagamento de hora extra do regime dos policiais civis.

À toda evidência, essa conclusão é equivocada. Basta perceber a preocupação do Min. Luís Roberto Barroso de iniciar o texto da tese com a seguinte expressão: “Não viola o art. 7º, XVI, da CF…”.

A utilização desta oração (“Não viola o art. 7º, XVI, da CF…”) é de muito significado, pois coloca o regime especial admitido como excepcional e reafirma o direito do policial à hora extra, que fica preservado.

O Programa Governamental pernambucano (regime excepcional) só foi permitido porque convive harmonicamente com o art. 7º, XVI da Carta Magna (regime-regra).

Para encerrar essa macroanálise do julgamento, é necessário firmar a premissa de que o fato de o regime especial permitido pela ADI 7356/PE ser excepcional atrai o dever de interpretá-lo restritivamente.

Diante de um outro regime, que não se amolde perfeitamente no precedente pernambucano, o dever é adotar a regra inserta na ADI 5114/SC, porquanto naquela ADI o direito fundamental recebe maior eficiência e amplitude.

 O que foi explanado até aqui permite extrair a conclusão de que o STF não autorizou a substituição do pagamento da hora extra pela indenização. Dizendo de outra forma, a Suprema Corte não transmudou a natureza da contraprestação pecuniária do trabalho extraordinário, de remuneratória para indenizatória.

Por outro lado, é possível concluir também que a decisão proferida na ADI 7356, nas suas razões fundamentais (ratio decidendi), ao confirmar o que foi decidido na ADI 5114/SC e 5404/DF, estabeleceu que a instituição de um regime qualquer que extirpe o pagamento do trabalho extraordinário é inconstitucional, especialmente se o argumento para essa exclusão for uma suposta incompatibilidade com o regime de subsídio.

Mas para chegar a essa conclusão, parece ser crucial a análise integral dos votos da Min. Cármen Lúcia e dos Ministros Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, a fim de que a interpretação da tese não tenha como resultado a incoerência e contradição da Suprema Corte.

Efetuada a distinção (distinguishing), é importante ressaltar alguns outros pontos complementares.

O primeiro deles é que a petição inicial da ADI 7356/PE reconhece a existência de um Programa em curso no Governo do Estado de Pernambuco, ainda que discorde de parte dele. É que a COBRAPOL entende que a política “remuneratória” do programa burlou os direitos sociais do policial civil e não podia fazer a contraprestação em valor fixo sob pena de violar o art. 7º, XVI da Constituição Federal.

Em respeito ao propósito deste arrazoado, não haverá incursão nos meandros do caso particular, mas uma consulta ao Portal da Transparência do Estado de Pernambuco, não foi possível identificar o pagamento de horas extras a policiais civis, senão os pagamentos das verbas indenizatórias do Programa de Jornada Extra.

Em princípio, a situação fática daquele Estado merece uma maior atenção dos órgãos fiscalizadores, em especial dos que se interessam pelos direitos humanos e pela redução de danos ligados à atividade policial.

Não será surpresa se uma averiguação séria constatar que está ocorrendo violação dos direitos humanos dos trabalhadores da segurança pública em Pernambuco, pois em princípio há um indicativo de vício de vontade na “voluntariedade” do policial que se insere no Projeto. Juridicamente, a previsão de hora extra convive com a indenização do Programa, mas a prática sugere o contrário.

Finalmente, tendo em vista a excepcionalidade do que ficou decidido na ADI 7356/PE, cabe relembrar a regra. Essa lembrança pode ser reavivada com a transcrição de parte do voto da Min. Cármen Lúcia nesta mesma ação.

Em primeiro lugar ela afirma que todo trabalho que ultrapassa a carga horária legal é hora extra:

Na Lei Complementar n. 155/2010 de Pernambuco, fixa-se a jornada de trabalho regular dos policiais civis em 8 (oito) horas diárias e 40 (quarenta) horas semanais.

Assim, o período de trabalho ordinário dos policiais civis que venha a exceder as 8 horas diárias ou as 40 horas semanais deve ser caracterizado como hora extra.

No inc. XVI do art. 7º da Constituição da República determina-se que a hora extra trabalhada deve ser remunerada com um adicional de, no mínimo, 50%.

No tocante à voluntariedade traz postura bastante consentânea com os direitos humanos e o princípio da vedação ao retrocesso, ao afirmar que a hora extra é devida independentemente da imposição do empregador[4]. Partilha-se desse entendimento. Vejam o que diz a Ministra:

A análise do texto constitucional revela inexistir qualquer exigência, para o recebimento do adicional de 50%, de que a jornada extra tenha sido imposta pelo empregador.

No âmago da questão a Ministra e Professora revela uma compreensão interessantíssima:

Assim, ao contrário do alegado nas informações da Governadora de Pernambuco, a participação facultativa do policial no Programa Jornada Extra não descaracteriza a hora extra prestada, tampouco procede argumento no sentido de que o servidor que deseja participar saberá, com antecedência, de quantos plantões participará, pelo que “o valor oferecido funciona como prêmio ou incentivo”.

Sabendo da necessidade de aumento de pessoal por um lado e da necessidade de contenção de despesas por outro, o administrador pernambucano optou por manter o numero de servidores integrantes da carreira de segurança pública e propor, de forma alternativa à realização de concurso público, um “Programa de Jornada Extra”.

Considerando, ainda, que a hora extra trabalhada, quando habitual, tem reflexos sobre outras verbas trabalhistas, o administrador pernambucano, propôs pagá-la sob outra denominação e sem o adicional de 50% previsto constitucionalmente.

Tal atitude configura não apenas ofensa ao inc. XVI do art. 7º e ao § 3º do art. 39 da Constituição da República, como uma burla ao princípio do concurso público e um enriquecimento ilícito do Estado.

Entendeu que o Programa de Jornada Extra levado à cabo pelo Governo do Estado de Pernambuco é inconstitucional.

Disse a Douta Ministra:

O pagamento das horas trabalhadas no Programa Jornada extra sem o adicional de 50% sobre a hora normal ofende o inc. XVI do art. 7º e o § 3º do art. 39 da Constituição da República”.

O fato é que mesmo após o julgamento das ADIs 5114 e 5404, ainda há, no Brasil, diversos Tribunais estaduais negando o direito dos policiais civis ao recebimento de horas extras com o acréscimo constitucional previsto no art. 7º, XVI, sob o argumento de que são incompatíveis com o regime do art. 39, § 4º, CF/88. Vejam:

RECURSO INOMINADO. AÇÃO ORDINÁRIA. PLEITO DE RECONHECIMENTO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 4º, DA LEI 7.874/2014, QUE VEDA O PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS E ADICIONAL NOTURNO AOS MEMBROS DA CARREIRA DE AGENTE DA POLÍCIA CIVIL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 4º, DA LEI 7.874/2014. IMPOSSIBILIDADE. CARREIRA DE AGENTE DE POLÍCIA CIVIL QUE É REMUNERADA POR MEIO DE SUBSÍDIO. INCOMPATÍVEL A REMUNERAÇÃO DE SUBSÍDIO COM VANTAGENS DE NATUREZA PESSOAL, TAIS COMO HORAS EXTRAORDINÁRIAS E ADICIONAL NOTURNO. AUSÊNCIA DE DECESSO SALARIAL E INEXISTÊNCIA DE OFENSA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (Acórdão 202356021, proferido no RI 202301040857, Rel. Fernando Clemente da Rocha, unânime, 1ª Turma Recursal do Estado de Sergipe. Publicado em 14/12/2023)

“JUIZADOS ESPECIAIS DA FAZENDA PÚBLICA. RECURSO INOMINADO. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE COBRANÇA DE PAGAMENTO POR ADICIONAL DE HORA EXTRAORDINÁRIA. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. POLICIAL CIVIL. PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ANEXO I DA LEI Nº 16.004/2016. INSTITUIÇÃO DE GRATIFICAÇÃO DE REFORÇO OPERACIONAL EXTRAORDINÁRIO. VERBA QUE NÃO SE CONFUNDE COM HORAS EXTRAS PREVISTAS PARA OS SERVIDORES CELETISTAS. ADESÃO VOLUNTÁRIA A REGIME DE TRABALHO DIFERENCIADO DE PLANTÃO. SITUAÇÃO ESPECÍFICA DA ATIVIDADE DE SEGURANÇA PÚBLICA. SISTEMA REMUNERATÓRIO DE SUBSÍDIO INCOMPATÍVEL COM ACRÉSCIMOS NÃO PREVISTO EM ATO NORMATIVO ESPECÍFICO. SITUAÇÃO QUE PREVALECE A CONDIÇÃO DE ESTATUTÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 39 §§ 3º e 4º DA CF/88. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.” (TJ-CE – RI: 02603809120228060001 Fortaleza, Relator: MÔNICA LIMA CHAVES, Data de Julgamento: 17/05/2023, 3ª TURMA RECURSAL DO ESTADO DO CEARÁ, Data de Publicação: 17/05/2023);

Em razão da recalcitrância de alguns Tribunais em seguir os precedentes vinculantes firmados em ações concentradas de constitucionalidade, é importante registrar o que diz a Ministra Cármen Lúcia na ADI 7356:

“Ressalto que a hora extra seria devida aos servidores policiais pernambucanos ainda que recebessem por subsídio.

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.114/SC, de minha relatoria, este Supremo Tribunal Federal deu interpretação conforme à Constituição ao caput e ao parágrafo único do art. 4º da Lei Complementar estadual n. 611/2013 de Santa Catarina para assentar que a remuneração pelas horas extras trabalhadas pelos policiais civis catarinenses é compatível com o regime de subsídio

Ainda nesse sentido, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.404/DF, na qual se discutia a constitucionalidade de normas da Lei Federal n. 11.358/2006 que dispõem sobre o regime de subsídios da carreira de Policial Rodoviário Federal, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese:

O regime de subsídio não é compatível com a percepção de outras parcelas inerentes ao exercício do cargo, mas não afasta o direito à retribuição pelas horas extras realizadas que ultrapassem a quantidade remunerada pela parcela única” (ADI n. 5.404/DF, Relator o Ministro Roberto Barroso, Plenário, Dje 9.3.2023).

É óbvio, pois, que a discussão travada na ADI 7356/PE não circundava em torno da (in)compatibilidade das horas extras e acréscimo com o regime de subsídio, muito menos quanto a natureza remuneratória da contraprestação pelo serviço extraordinário, pois essas questões já estão assentadas na Suprema Corte, conforme demonstrado.

O debate girou em torno da constitucionalidade do Programa instituído pelo Estado de Pernambuco, mediante uma contraprestação em valor fixo, de cunho indenizatório, em regime batizado pela AGU como “regime especial de trabalho”, tudo sem prejuízo da hora extra.

Por todo o exposto, a ideia de que o STF superou o entendimento da ADI 5114/SC por meio da ADI 7356/PE não passa de desinformação.

A hora extra do policial civil[5], com o acréscimo de 50% sobre o valor da hora normal, com natureza remuneratória, se encontra garantida pelo Supremo Tribunal Federal, salvo a existência de um Programa Governamental, com as características mencionadas na tese (período pré-determinado e adesão voluntária), e desde que o regime vigente não tenha afastado ou vedado o pagamento da hora extra, mormente sob o argumento de que é incompatível com o regime de subsídios.

[1] Art. 4º Estão compreendidas no subsídio, e por ele extintas, as seguintes vantagens pecuniárias: I – gratificação por curso, prevista na Lei nº 6.545, de 26 de junho de 2008; II – Gratificação por Periculosidade; III – Adicional de Triênio; IV – Adicional de Terço. Parágrafo único. Fica expressamente vedado o pagamento de horas extras e adicional noturno aos membros da carreira de Escrivão de Polícia Civil. LEI Nº. 7.873, de 02 de julho de 2014.

[2] Art. 2º O art. 5º da Lei Estadual nº 6.276, de 11 de outubro de 2001 passa a vigorar acrescido do § 3º com a seguinte redação: “Art. 5º O sistema remuneratório dos servidores integrantes desta Lei é o estabelecido por meio de subsídio, fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, periculosidade, insalubridade, hora extra, verba de representação, ou qualquer outra espécie remuneratória, ressalvadas as verbas de função de confiança e gratificação do interior, o adicional noturno e as de caráter indenizatório, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI, da Constituição Federal. 

[3] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1997.

[4] Essa é uma matéria que demanda uma análise apartada.

[5] Prevalece no STF a ideia de que o policial militar não faz jus (art. 142, § 3º, VIII)


 

 Por: Adir Machado Bandeira/(Artigo publicado em 7/4/2024 no portal jus.com.br)
Post: G. Gomes 
Home: www.deljipa.blogspot.com

Vide: Ascom?Cobrapol

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